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Hoje, quase um mês depois de ter visto que passei em medicina em uma faculdade estadual, sinto-me pronta para um enorme desabafo preso na garganta por três longos anos. Mas antes, gostaria de contar que, no meio da minha felicidade e ansiedade por entrar no curso que eu queria e o alívio de reduzir os gastos dos meus pais, alguns ainda não ficaram "satisfeitos" e foram o gatilho para esse texto. 

 

Bom, para começar, gostaria de contar um pouco sobre a minha experiência nesse tempo. Vi pessoas extremamente inteligentes e capazes de mudar o mundo não passando no final do ano, vi gente que escolheu medicina por vários motivos (dinheiro - já admitiram categoricamente que esse era o objetivo -, pressão familiar, efeito cardume - no qual a excessiva concorrência do vestibular de medicina fez acreditar que essa seria a opção mais segura -, enfim...), vi professores estimularem o pouco sono e o estudo desenfreado, ao mesmo tempo, vi alguns que faziam de tudo para trazer humanidade para cada aula, vi competição de nota em simulado, vi muitas pessoas chorando nos corredores (por desespero e por vitória), vi diretores e professores falarem que lutas sociais não tinham espaço na escola e que nosso objetivo naquele momento era exclusivamente passar no vestibular. É horrível pensar que precisamos podar discussões sobre necessidades maiores (você tem de concordar que questões sociais como racismo, misoginia e homofobia são muito mais importantes e fundamentais para uma sociedade como um todo) porque há uma prova, mal elaborada e desigual, que escolhe se você tem direito à educação superior. Irônico.

 

Eu me podei, eu deixei de lutar, pelo menos por um período, pelos meus ideais por causa de uma coisa que eu não acreditava, esperando (e espero) poder agir quando superasse essa "fase". 

 Não, vestibular não é um método que mede inteligência, tampouco a suficiência de estudo ou capacidade dentro de uma carreira. Por causa dessa prova, cursinhos preparatórios arrecadam milhares de duas formas: com uma maioria que vê nas propagandas uma possibilidade de conseguir o mesmo e com uma minoria que pinta "MED" ao lado de uma faculdade conceituada (USP é a favorita) para estampar outdoor e atrair novos pagantes. Para os grandes cursinhos, vestibulandos são números, são convertidos em capital dentro de um ano. Se você tiver características humanas como cansaço, momentos deprimentes, necessidade de lazer, insegurança, falta de estímulo, ou qualquer outro sentimento, você não é o que eles querem.
 

Mas sabe qual o grande problema? Nesses três anos, vi pessoas entrarem em depressão, ansiedade, dependência de café e outros estimulantes, pânico... Vi pessoas prestarem medicina porque viram a maioria da sala fazendo o mesmo e, naquele palco tão influente, ouviram que era o curso mais difícil e que traria maior glória (pena que não sabiam que era para o próprio sistema). Ora, você deve estar pensando que eu sou o ser mais hipócrita do universo por criticar um meio que eu vivi e um "tipo de pessoa" (vestibulando de medicina) que eu fui. Bom, no meio do ano, um dos meus maiores desesperos foi tentar enxergar quão imersa nesse conto de fadas eu estava, e qual era o tamanho da influência social na minha escolha. Afinal, eu prestava medicina porque achava que seria o certo ou porque acreditava de fato nessa carreira? Depois de um período de crise existencial, acreditei que não me via em outro curso, atuando de outra forma. Passei a confiar de verdade que eu realmente amava o que escolhera para ser e que tudo isso que envolve o processo para chegar na faculdade não poderia afastar dessa carreira alguém que realmente a queria tanto e tinha tantos planos para ela.
 Então, os questionamentos que ficam são: todos que prestam o curso mais concorrido, de fato o querem? E o que transformou os cursinhos de medicina em máquinas de dinheiro com o custo de saúde mental de milhares de alunos?


Mais uma coisa... ouvir que "se você estudar, você passa" faz com que a maior parte dos que ouvem e não conseguem passar no que querem (vide concorrência e nota mínima) acredite ser o mais próximo de um lixo humano, passam a acreditar que são incapazes. Mesmo que alguns desses realmente mereceriam conquistar o que almejam, não é tão simples quanto parece. Como eu disse, envolve saúde mental e oportunidades passadas.
 

Ou seja, se você está nesse ambiente ou tem contato com vestibulando de medicina (digo desse curso especificamente por ser "a força motriz" da propaganda dos cursinhos e um dos desejos comuns da população brasileira) não use a meritocracia para separar os que passam dos que não passam. Os que passaram não são melhores, provavelmente tiveram maiores oportunidades para se adequar ao sistema de vestibulares (uma prova de 1 a 4 dias que mede matérias específicas e que custam dinheiro para serem aprendidas). A maior prova disso é que há exemplos de estudantes de medicina e médicos que compõem os piores seres humanos, usando seus recursos da carreira para menosprezar, criticar, rebaixar e, inclusive, fazer o mal (como os médicos que atenderam Marisa Letícia Lula da Silva e os veteranos que praticam trotes abusivos em grandes universidades).
 

Por fim, peço para que todos os envolvidos reflitam e se questionem sobre essa saga que se transformou o cursinho de medicina e os efeitos disso na vida dos jovens. Aos que prestam medicina, pensem os motivos; aos que convivem, não cobre além do que você mesmo conseguiria fazer, nem crie uma hierarquia falsa de sucesso pessoal baseada em faculdade, curso e tempo prestando vestibular. A vida e o ser humano vão muito além disso, mesmo que o sistema diga o contrário.
 

No mais, obrigada aos que leram até o final o meu desabafo. Se você verdadeiramente quer ser médica ou médico, confie em você, tente não dar ouvidos aos que não entendem o que está se passando e não desista no meio do caminho, mesmo sabendo que o sistema é cruel e que as pessoas estão absortas nele. E me disponho a conversar com quem estiver indeciso ou desesperado sobre esse assunto, não se cobre controle emocional quando o meio é caótico e desumano, e também me disponho a conversar com quem discorda de algo. 

​

Desabafo de Maryelle

http://ossosvitreos.blogspot.com.br/2017/02/o-que-fizeram-com-o-cursinho-de-medicina.html?spref=fb

O que fizeram com o curso de medicina ?

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